5.11.07

''O Cazuza era muito macho''

Olá, leia na íntegra entrevista com João Araújo, executivo do mercado fonográfio, acionista da Som Livre e pelo que é mais conhecido: é pai de Cazuza.

Sugerimos ler ouvindo: O Tempo não para.


Primeiro brasileiro a ganhar o Grammy Latino, o pai do cantor fala da homossexualidade do filho e conta como revelou ídolos da MPB - Por AZIZ FILHO (Revista Istoé)

É impossível contar a saga da música brasileira sem falar do carioca João Araújo, pai do roqueiro Cazuza, que incendiou os palcos do País nos anos 80 e morreu de Aids na década seguinte – tornando- se um símbolo da luta contra essa doença. João Araújo tem, e muito, o seu próprio mérito quando o assunto é música, embora, inevitavelmente (e para seu orgulho), tenha entrado para a história como “o pai de Cazuza”. Eis a prova de seu valor: na quarta-feira 7, em Las Vegas, ele será o primeiro brasileiro a receber o prêmio Grammy Latino, concedido a pessoas com importantes contribuições em gravação e promoção musical. João tem 72 anos de vida, 57 de indústria fonográfica e trabalhou em diversas gravadoras até se tornar um dos sócios da Som Livre. Nesta entrevista, ele quebra o seu temperamento reservado e expõe, como nunca fizera até então, sua relação com o filho. Mais: ele avaliza a tese de que o período de criação intensa da música brasileira se deu na ditadura militar.


ISTOÉ – Dos ídolos que ajudou a projetar, qual foi a experiência mais gratificante?


João Araújo – Ajudar o Djavan foi muito compensador, coitado, porque ele vinha das Alagoas, não tinha onde dormir. Tocava um violão que fascinava quem entende de música. Se ele tem cara de pobre agora, sendo rico, imagine a cara dele quando era pobre mesmo. Ele falava: seu João, tenho de voltar para o Nordeste, aqui não tenho nem onde dormir. Consegui numa boate do Leblon chamada 706, nos anos 70, um emprego para ele cantar em troca de uma miséria de cachê. Ele foi ficando, melhorando. É muito grato por isso.

ISTOÉ – Outros artistas?


Araújo – Quando eu contratei o Caetano (Veloso) e a Gal (Costa), o pessoal da gravadora achava que eles não iriam agüentar, iriam morrer cedo e de inanição, porque eram muito magrinhos. Projetei o Lulu Santos, que se chamava Luiz Maurício e era meu empregado. Projetei a Xuxa, cujo recorde na vendagem de discos nunca foi batido na América Latina. Projetei Ney Matogrosso. São muitos.

ISTOÉ – E o Cazuza?


Araújo – No primeiro momento, eu achava a sua música muito ruim. Fui com o Moraes Moreira ver o primeiro show do Barão Vermelho em um cafofo em São Conrado. Mambembe. Os instrumentos, coitadinhos. Mas senti uma luz no Cazuza, cantava de forma diferente. Antes disso, eu nem sabia que ele mexia com música.

ISTOÉ – Não sabia?


Araújo – Ele chegava depois da meianoite, lá pelos 17 ou 18 anos, e ficava compondo até as quatro da manhã. Eu nem via. Aí chegou o Guto Graça Melo e o Zeca Jagger (Ezequiel Neves), que eram amigos dele, e me deram uma fita para ouvir. Era o Cazuza se abrindo para o sucesso. A música dele que eu mais gosto deu o título ao último show, a coisa mais linda que eu vi na vida: O tempo não pára.


ISTOÉ – Foi difícil lidar com a opção sexual de Cazuza?


Araújo – Não. O que eu não suporto é o gay que gosta de se vestir de mulher e fala que é mulher. O homossexual é diferente disso, é um desvio de ordem sexual, que não implica a personalidade. O Cazuza era muito macho, gostava de sair na mão e não ouvia desaforo. Mas era homossexual. Soube disso numa época terrível porque ninguém falava desses assuntos, era um tempo em que homossexual escondia a sua condição sexual.


ISTOÉ – O Cazuza também? Araújo – Não. Ele falava de seu homossexualismo de forma aberta. Custou mais para falar da Aids, mas falou do homossexualismo assim que teve certeza. Ele deve ter feito experiências na adolescência e, quando viu que gostava desse lado, começou a falar.

ISTOÉ – O que o sr. acha de ele ter assumido publicamente a Aids? Araújo – Cazuza era ótimo para tirar as pessoas da crise. Sempre foi otimista e eu vendia otimismo para ele. Telefonava- lhe comentando qualquer notinha de jornal que falasse de algum avanço contra a Aids. Eu dizia: Cazuza, daqui a pouco vai ser como diabete, controlada com remédio, não vai matar mais. Eu tinha de falar isso, mesmo sabendo que não era assim. Ele sabia que não tinha saída, mas fazia a mesma coisa com os outros. Naquele tempo tinha um remédio chamado AZT. Hoje temos 16 antivirais. Tem gente com HIV vivendo muito bem.

ISTOÉ – Como era a relação pai e filho?


Araújo – Tínhamos uma relação de profundo amor. Claro que brigávamos e uma vez eu o expulsei de casa. Ele sempre foi rebelde demais. Certo dia, com uns 20 e poucos anos, ele entrou em casa e disse, sem mais nem menos: “Estou indo para a Bahia.” Perguntei se ele já tinha falado com a Lucinha (Lúcia Araújo, a mãe), e ele respondeu: “Não vou falar com ninguém, eu vou e pronto.” Parecia que estava drogado. Eu também engrossei: “Você só vai se passar por cima do meu cadáver.” Ele foi para o banho, eu entrei também debaixo do chuveiro e foi uma pancadaria aquática. Isso tudo acabou umas três horas depois, com beijos e abraços. Eu queria mostrar a ele que tinha alguém, além de Deus, no qual ele não acreditava muito, a quem devia dar satisfação: eu e a mãe dele.

ISTOÉ – Qual é o melhor momento da MPB?


Araújo – Foram os anos 60, os anos 70 e início dos 80, a fase da contestação. A música brasileira tem 80% de participação no mercado nacional, mas realmente se tornou forte e polêmica nessa época. Ficava todo mundo querendo saber qual era o significado de determinada música. Foi quando apareceu Chico Buarque, Caetano Veloso e muitos outros. Surgiram os festivais. Tivemos diversos movimentos musicais, como a tropicália e a bossa nova, além da jovem guarda, que não tinha a ver com política.



ISTOÉ – Alguma boa história da bossa nova?


Araújo – Vou contar uma coisa: a primeira pessoa que sacou a bossa nova foi o Manuel Bandeira, que era muito amigo do Jairo, pai da Nara Leão. Uma vez por mês ele ia tomar uns gorós no apartamento do seu Jairo, no Lido, e via uns meninos sentados lá embaixo com um violão, cantando baixinho. Eles eram, nada mais, nada menos, Roberto Menescal, João Gilberto, Carlos Lyra e Luizinho Eça. Começavam a botar a cabeça para fora.

ISTOÉ – Como o sr. entrou na indústria fonográfica?


Araújo – Estou na indústria fonográfica há 57 anos, só fiz isso até hoje. Até o Vinícius de Moraes eu botei para cantar, no primeiro disco de bossa nova. O Vinícius cantarolava sempre para nós uma música que ele adorava: quando a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolvem se encontrar. Eu cismava que ele tinha de gravar aquilo. Ele dizia: “Não, João, eu não sou cantor, não, meu negócio é ser poetinha.” Eu insisti até conseguir. O Tom Jobim era igual ao Vinícius, achava que não era cantor.


ISTOÉ – E o Chico Buarque?


Araújo – O Chico era muito garoto quando surgiu a bossa nova. Eu o conheci quando a Nara estava para gravar um disco para mim. Ela me ligou de São Paulo e disse: “Seu João, tenho de parar de gravar o disco porque conheci uma pessoa que reformulou minha cabeça toda. Vou ter de jogar fora o que fiz, pelo menos seis músicas, porque encontrei seis jóias da música popular, de um cara que ninguém conhece. Vou botá-lo no telefone para falar com o senhor. Fala aí, Chico.” Aí vem Chico Buarque, que sempre fez esse estilo de não falar, de ser tímido: “Olá, seu João, eu sou o Chico. Tenho umas musiquinhas aqui que a Nara gostou e tal. O senhor tem alguma coisa contra?” Essas musiquinhas eram A banda, Quem te viu quem te vê, os primeiros sucessos. Foi um atrás do outro. Era a fase romântica dele. Fantástica.

ISTOÉ – E a fase da ditadura?


Araújo – A Som Livre gravou todos os festivais de música, inclusive quando o Geraldo Vandré ficou em segundo lugar com Pra não dizer que não falei das flores e passou a ser perseguido. Essa música tinha só duas posições, mas a letra era fortíssima. Os militares, no início, não se deram conta porque, se não me engano, o Vandré tinha sido das Forças Armadas, tinha bom trânsito, não era um ativista. Passou a ser a partir daí.

ISTOÉ – Aconteceu algo no festival?


Araújo – Eu estava no conselho organizador e dirigia o festival quando um sujeito chegou e disse: “Manda uma pessoa dizer para o Vandré que, quando ele acabar de cantar, não pode ficar de bobeira, deve sair pelos fundos do palco, virar à direita e entrar em uma caminhonete com uma faixa amarela. Já está tudo preparado para ele fugir porque vão prendê-lo.” E o que ele fez? Em vez de sair pela direita, foi pela esquerda, onde também tinha uma caminhonete com faixa amarela, mas era do jornal Diário de Notícias. Ele entrou na caminhonete e o pegaram lá.

ISTOÉ – O sr. teve problemas?


Araújo – A Rede Globo teve e eu também tive. Um dia, voltando da Europa, encontrei no escritório um papel assim: “convite/intimação” da Polícia Federal. Eu nem sabia onde era, pedi a um advogado da Globo para me acompanhar. Entrei às 14h e saí às 20h. Fui fichado. Teve um delegado que pôs o revólver 38 na mesa e disse: “Agora o senhor fala.” Eu perguntei: “Mas falo o quê?” E ele: “Não me venha com saídas estratégicas, o senhor sabe. Festival, meu amigo, fala daquele festival, aquela barafunda que vocês fizeram.” O cara era contundente, violento. Estava bravo por causa de uma música da Baby Consuelo que dizia: você pode fumar baseado. Ele disse que era um estímulo nosso à maconha.

ISTOÉ – Qual a sua avaliação do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva?


Araújo – Minha vida política é muito engraçada. Sou lulista desde o começo, mas, quando garoto, fui lacerdista (referência a Carlos Lacerda, que foi governador do antigo Estado da Guanabara). Todo mundo era lacerdista porque, quando o cara abria a boca, dava um show e todos ficavam mexidos com aquilo. Mas fui crescendo, viajando pelo Brasil, aumentando a consciência social, vendo as carências do País.

ISTOÉ – Como nasceu a simpatia pelo presidente Lula?


Araújo – A primeira razão que me levou a simpatizar com Lula é que ele era quase analfabeto e fez todo esse esforço Ele, que nunca tinha lido, começou a se interessar pela leitura. Outra coisa é que ele deu ao brasileiro a possibilidade de não ter que ser comunista nem reacionário. Podemos ficar em uma linha social, trabalhista, sem os clichês.


ISTOÉ – Como personagem da crônica carioca, o sr. vê solução para a violência da cidade?


Araújo – O Brasil e o Rio de Janeiro perderam quando a capital foi transferida. Brasília é um amontoado de funcionários pagos por nós, morando em apartamentos fantásticos. Concordo em muita coisa com o Oscar Niemeyer, mas ele é mais escultor do que arquiteto. Faz linhas fantásticas, mas você entra naqueles prédios e morre de calor lá dentro. O Rio é a capital natural do Brasil. A solução do Rio não será a curto prazo, mas quem observa o momento econômico do Brasil vê uma nova classe média crescendo, com poder aquisitivo e outros anseios para seus filhos. O padrão está se elevando e isso amplia a educação, a cultura, o consumo. O pobre já come três vezes por dia, por causa de medidas que ganharam ênfase no governo Lula, mas vêm sendo adotadas há mais tempo.


ISTOÉ – A única saída para a violência seria melhorar a situação econômica do País?


Araújo – É a saída para o Rio e para o Brasil. Os pais vão querer outra coisa para seus filhos. As crianças terão outros ídolos, outras referências, o tráfico vai perder espaço, como aconteceu com as máfias de Nova York

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa senhora, que reportágem magnífica!!!!! que homem inteligente!!! eu não sabia que o Vandré tinha sido preso daquela forma,muito legal!
beijos